Sacolejando
nos últimos bancos do circular, encobria-se com o capuz do casaco e a máscara
de tecido, que lhe cobria o rosto. Dessa vez não estava ouvindo música, era o
prefeito que falava no headset. Os olhos estavam fixos em uma gota de
suor no vidro do ônibus. Ela crescia conforme o ônibus lotava. Mentalmente,
contava quanto tempo a gota demorava para crescer e descer pelo vidro,
desaparecendo contra a borracha da janela.
Não se ligava em política. Sabia que era
importante, mas tinha de primeiro tentar sobreviver. Acordava cedo. Antes do
sol romper a madrugada já tinha de estar na
transportadora para descarregar
os primeiros caminhões. Ralava até às 16:00, depois comia alguma coisa e rumava
para a escola. Comer de verdade, só à noite, quando a avó esperava ele com um
rango quentinho.
Detestava
comer sozinho. A avó, uma Sra. de setenta e cinco anos, esperava religiosamente
por ele todos os dias com uma janta pronta. Mas gostava mesmo era quando ela
perguntava como foi o dia. Um verdadeiro interrogatório.
Naquele
ano queria terminar a escola; depois, quem sabe, um curso técnico. Mais tarde, com
sorte conseguiria uma bolsa na faculdade. Estava longe de ser o melhor aluno da
classe, já havia reprovado duas vezes, mas naquele ano estava na média. Isso até
o início da pandemia. Depois bagunçou um pouco. Teve que vender o notebook para
ajudar em casa na conta da energia. Tentava se virar com o celular.
Enquanto divagava pelas boas lembranças, ouvia
também o comunicado diário do prefeito. Nele, o bacana anunciava os mortos das
últimas 24 horas. Um ritual mórbido, uma espécie de leilão fúnebre. Nove mil
infectados, setenta internados na UTI e 50 mortos.
Durante
os comunicados, o prefeito fazia questão de ler os comentários dos eleitores. Alguns
eram movidos pelo fanatismo político, outros pela religiosidade; em comum o
papel de palpiteiros. Até receitas de
remédios caseiros para a moléstia era lido. O prefeito, em campanha para
reeleição, aconselhava a necessidade de ter cuidado, inclusive de evitar andar
de transporte coletivo.
O
passageiro do fundo do ônibus não ouvia aquilo por gosto, ou sadismo, buscava
notícias da avó. Quando noticiaram o morto do dia, logo se fez questão de
afirmar que o cadáver era de uma idosa e que tinha comorbidades. Como se o vírus possuísse um habeas corpus
preventivo para matar.
Quem morre, tem é filhos, netos, amigos, casa,
bicho de estimação. Morte de gente não pode ser contada assim, como morte de
mosca. Não pode ser contabilizada assim, como se conta gado rumando para o
matadouro. A finada da vez também tinha um neto. O neto agora não tinha mais
ninguém para fazer sua janta, perguntar como foi seu dia e fazer cafuné em seu
cabelo
O ônibus chegou na última
parada, desceu, sentiu a chuva salpicar o capuz e o vento gelado cortar o rosto.
No outro lado da rua passava um carro importado, igual ao do patrão. Eles
queriam que o ônibus voltasse, porque estava ficando feio a patroa ir de
limusine buscar na quebrada a empregada, pensou...
Gostei...parabéns pela estreia... é do jeito que gosto... Tem lirismo
ResponderExcluirObrigado Regina, muito Obrigado
ExcluirShow Josué. Amei!!! E chorei...
ResponderExcluirObrigado, muito obrigado pela leitura
ExcluirGostei
ResponderExcluirObrigado Fabricia, preciso de uma assessoria de redes. Conto com a parceria de sempre..
ExcluirUma bela e ao mesmo tempo triste crônica. Parabéns Josué, me emocionei. Que realidade vivenciamos heim??!!!
ResponderExcluirVivemos tempos em que a realidade não e expressa em números. Obrigado pela leitura
ExcluirExcelente reflexão! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado paixão, obrigado por compartilhar
ExcluirExcelente crônica!!
ResponderExcluirJá há tempo venho indignado com o uso da comorbidade como pré sentença capital e para encobrir a ineficiência!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue presente aos leitores esse belo texto. Parabéns!
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirObrigado Nilton
ExcluirRealmente. estamos vivendo uma pandemia social: o OUTRO é descartável.... O OUTRO é apenas um número a mais .....O OUTRO é um ser HUMANO e não apenas IDOSO, portador de COMORBIDADES.... O OUTRO pode ser seu ente mais AMADO.... Não importa.... O OUTRO é apenas o OUTRO....................
ResponderExcluir,
isso, como se o fato de ser idoso ou doente justifica a morte...obrigado pela leitura e contribuição
ExcluirParab´´ens! Poesia em prosa.
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